Relação homem-animal em bovinos
Os ancestrais selvagens dos bovinos foram os auroques (Bos primigenius), existindo estudos arqueológicos que comprovam a sua existência, tendo-se desenvolvido o processo de domesticação em dois troncos distintos, o Bos taurus (taurinos) e o Bos indicus (zebuínos). Quando o homem descobriu a agricultura e começou a construir povoados permanentes, novos animais começaram a fazer parte da paisagem modificada. O imponente e temível auroque esteve entre as primeiras espécies a serem domesticadas, tal como sucedeu com o cão e o cavalo. Perdeu envergadura e ferocidade porque foi amansado pelo homem, mas graças a esse lento processo, ganhou renovada importância para as comunidades humanas.
Além da carne, da pele e dos cornos, passou a fornecer também leite e força de tração. A sua proximidade com o homem foi tão intensa que a intolerância à lactose, típica dos humanos e dos restantes mamíferos adultos desapareceu nas populações que criavam bovinos.
Esta adaptação genética é um excelente exemplo da coevolução entre as duas espécies. A figura do auroque foi gravada pelo homem pré-histórico nas paredes de grutas um pouco por toda a Europa e em Portugal também, com destaque para o vale do Côa, através de traços rudes e ténues mas que passados vários milénios ainda podem ser contemplados. E a sua importância é de tal ordem que a UNESCO declarou o vale do Côa com as rochas desenhadas de auroques como Património da Humanidade em 1998.
Para os arqueólogos, este achado demonstra bem a importância ancestral deste bovino selvagem (auroque) para as comunidades primitivas. Desde essa época remota até à atualidade, as raças de bovinos emanciparam-se e atualmente contamos com 16 raças autóctones portuguesas e um grande leque de exóticas. Para aferirmos a importância destas exóticas, lembre-se que Artur de Figueiroa Rêgo em 1931, garantia que 20% do abastecimento de leite à cidade do Porto provinha de vacas da raça Barrosã (vulgarmente apelidadas de Piscas) e os restantes 80% já eram assegurados por vacas de raça Turina (designação muito utilizada para as vacas da raça primitiva Holstein Frísia em Portugal).
Domesticação e evolução dos bovinos
Ao longo de milhares de anos e após a domesticação dos bovinos com a adaptação dos animais aos humanos e vice-versa é aceitável que aqueles demonstrem caraterísticas genéticas, fenotípicas e comportamentais muito distintas dos seus ancestrais e parentes selvagens. Um dos primeiros passos do processo de domesticação foi assegurar que os animais apresentassem menos medo e reatividade quando em contacto com o ser humano e portanto, as espécies domésticas adaptaram-se progressivamente à presença do Homem com relativa naturalidade.
O processo de domesticação com toda a certeza intensificou o contacto e a interação entre o ser humano e os bovinos e a qualidade desta relação pode ser definida como o grau de proximidade e a perceção mútua das suas necessidades de relacionamento. O contacto com os animais e a sua manipulação podem ser efetuados de uma forma positiva, aumentando a confiança e diminuindo o medo que os animais demonstram pelos seres humanos, ou de uma forma negativa, aumentado o medo e provocando aversão dos animais ao contacto com os tratadores. Interações negativas e medo dos seres humanos estão associados a piores performances de bem-estar animal e diminuição da produção de leite.
A relação entre produtor e animal está dependente da frequência, intensidade e intimidade do contacto entre ambos. A qualidade da relação homem-animal parece ter uma nítida influência sobre o comportamento social de vacas leiteiras. Um contacto próximo entre criador e animais, com uma situação individual estável contribui positivamente para um apropriado comportamento social do efetivo. A distância de fuga (teste de aproximação) é um excelente indicador comportamental para avaliação da relação homem-animal, descrito no referencial Welfare Quality (2009) no princípio do comportamento apropriado dos animais.
Atitudes e perceções do produtor
Há evidências de que a qualidade da relação homem-animal tem uma grande influência no comportamento social de vacas leiteiras. O perfil genético dos animais, bem como a quantidade e qualidade do contacto humano são fatores que influenciam a relação homem-animal. Enquanto tratadores com atitudes positivas como interações táteis positivas (carícias, leves palmadas na região da garupa e do pescoço, coçar na região da cabeça), tom de voz suave e assobios, resultam em comportamentos positivos e consequentemente aumentos de produtividade. Se a interação social do Produtor com o animal for negativa, desencadeia-se um sentimento de medo dos animais sempre que uma pessoa entra na exploração. Os bovinos são animais que gostam de rotinas e que possuem boa memória, sendo capazes de discriminar operadores envolvidos nas interações, apresentando reações específicas em função do tipo de experiência vivenciada.
No caso das ações e atitudes dos humanos serem aversivas (elevação da voz, movimentos bruscos, palmadas severas) tendencialmente aumenta o nível de medo dos animais pelos humanos, causando uma maior distância de fuga. Operações de maneio como descorna, vacinação ou colheita de sangue também podem considerar-se ações aversivas, no entanto se efetuadas com meios de contenção adequados e tranquilizadores dos animais, não conduzem a respostas tão negativas como as descritas atrás, que se prolongadas no tempo podem conduzir a stress agudo ou crónico.
O medo é um sentimento negativo, que deve ser evitado, por ser potencialmente prejudicial para o metabolismo fisiológico do organismo. Tem consequências como a ativação de respostas de stress, que para além de serem adversas para o animal e afetarem o seu bem-estar, também provocam diminuição da produção leiteira, do desempenho reprodutivo e aumento do risco de aparecimento de lesões. A ausência de contacto regular, em explorações com elevada densidade de animais, proporciona uma tensão prejudicial entre humano e animal.
O Produtor assume grande responsabilidade no bem-estar animal, quer ao nível das instalações, como no maneio alimentar, sanitário, reprodutivo e nas tarefas diárias de rotina e contacto direto com os animais (ordenha, tratamentos), que nunca deve ser menosprezado. O conhecimento e competência de reconhecimento da gama de atividades comportamentais desenvolvidas pelas vacas são fundamentais para um Produtor, pois só dessa forma conseguirá identificar posturas e atitudes nos animais que lhe revelem sinais capazes de identificar problemas de saúde e bem-estar.
Existe evidência científica a demonstrar que vitelos manipulados de forma adequada ao nascimento e até ao desmame foram menos reativos à presença humana em idade adulta. Se o Produtor não é capaz de detetar uma situação de risco para o bem-estar, a probabilidade de providenciar tratamentos ou planear planos de prevenção será mais reduzida. As atitudes perante os animais são apreendidas quer através da experiência, como por intermédio de formação e leitura de documentação específica sobre comportamento animal e podem sempre ser melhoradas com novas experiências ou novas informações.
A modificação de atitudes pode melhorar a relação homem-animal e foi demonstrado que intervenções cognitivas melhoraram as atitudes e comportamento dos produtores perante os animais.
O perfil do Produtor mais habilitado para lidar favoravelmente com animais e constituir um elemento facilitador do bem-estar será aquele que vislumbra maioritariamente aspetos positivos na sua atividade profissional, considera que os animais possuem necessidades fisiológicas, comportamentais e psicológicas próprias e respeitáveis, aprecia o contacto com estes e atribui grande importância à observação, monitorização e manipulação das vacas. Existem evidências de que a interação negativa dos operadores durante a ordenha é passível de prejudicar a produção de leite, os teores de proteína e gordura e além disso desencadeia o aumento da concentração de cortisol plasmático, que afeta sobremaneira o bem-estar dos animais.
Avaliação da distância de fuga
A relação homem-animal pode ser avaliada através de um teste comportamental, utilizado em diferentes estudos e que se designa por distância de fuga. O técnico deve começar por se colocar, a uma distância de 2 a 3 metros à frente de um animal que esteja com a cabeça ou o pescoço para além da barra da manjedoura. O teste inicia-se quando o animal estiver consciente da presença do perito. Este avança devagar em direção ao animal a uma velocidade de um passo por segundo (passos de cerca de 60 cm), com o braço esticado numa posição de aproximadamente 45 graus em relação ao seu corpo. Quando estiver mais próximo do animal, direciona as costas da mão para o mesmo e foca-se no focinho do animal.
O avaliador só termina o movimento quando o animal se retira ou quando tocar no seu focinho. A fuga consiste em movimentos diversos do animal, que podem ser: virar a cabeça para o lado, retirar a cabeça totalmente da barra da manjedoura ou virar-se para trás. A distância de fuga corresponde à medida entre a mão do perito e o focinho do animal no momento em que este se retira. A distância é de zero centímetros quando se toca no focinho, já que o animal não se afastou com a presença do avaliador e que seria a situação desejável. Assim as distâncias de fuga podem ser agrupadas nas seguintes categorias: 0)- o perito toca do focinho do animal; 1) fuga a menos de 0,5m; 2) fuga entre 0,5 a 1m; 3) fuga superior a 1m. No final do teste são calculadas as percentagens de animais e sua distribuição pelos intervalos referidos anteriormente.
Normalmente a percentagem de animais que evitam o avaliador a uma distância superior a 1 m não deverá ultrapassar 20% das vacas testadas. Também pode ser calculado o índice da relação homem-animal, tal como descrito no referencial de avaliação Welfare Quality (2009). Este índice oscila entre zero (pior situação possível) e cem (melhor situação possível).
Conclusão
A domesticação impôs modificações fisiológicas, morfológicas e de comportamento significativas nos bovinos. Podemos especular que os nossos antepassados retiveram inicialmente auroques jovens, mais fáceis de capturar, tendo permitido a sua reprodução controlada e criado assim os primeiros núcleos de bovinos domésticos. Um Produtor/tratador responsável deverá estar sempre atento às necessidades fisiológicas, de segurança e comportamentais dos animais que se encontram ao seu encargo.
As atividades de maneio diário de uma exploração, tais como a identificação animal, a separação em grupos, a vacinação, a desparasitação, os curativos, entre outras tarefas devem ser conduzidas por operadores experientes, que acautelem os requisitos necessários para manter os animais calmos nas operações de maneio fundamentais. É possível desenvolver relações positivas entre humanos e bovinos no dia-a-dia da exploração, sem necessidade de investimentos para alcançar este objetivo. Será suficiente aplicar os conhecimentos existentes em matéria de bem-estar animal para adaptar os sistemas de maneio às caraterísticas e necessidades dos bovinos e nunca o inverso.
No processo de ordenha, as ações positivas refletiram-se em menor distância de fuga, menor tempo de aproximação, aumento da ruminação, baixa reatividade, diminuição de defecação e micção, com resultados favoráveis quer na produção como na qualidade do leite. Conhecer e dar nomes às vacas reflete empatia com os animais e está associado, de acordo com vários estudos a uma relação positiva homem-animal.