Consumo de leite: Desconstruir mitos
Nenhum alimento tem suscitado tanta controvérsia como o leite. Perante a esgrima de argumentos pró e contra o seu consumo, o melhor é mesmo focarmo-nos nos factos e no conhecimento científico, ainda que fiquem muitas questões por responder.
O consumo de leite no mundo
leite e os seus derivados fazem parte dos padrões alimentares de muitas populações mundiais com ampla distribuição geográfica, facto que se explica por razões históricas, socioculturais, biológicas, evolutivas, ambientais e nutricionais. Em relação a esta última dimensão, quando se analisa a composição nutricional do leite de vários mamíferos, sobressai a complexidade da matriz química observada. A diversidade de macro e micronutrientes é notável, destacando-se a vitamina A e minerais como o cálcio, potássio e fósforo, pelo seu conteúdo. O perfil de ácidos gordos e de compostos bioativos presentes no leite tem sido foco de particular interesse, não só devido a aspetos nutricionais, mas também a potenciais benefícios para a saúde. Acresce que é um alimento importante para a satisfação das necessidades nutricionais de muitas pessoas, está disponível a preços acessíveis, e integra o conjunto de símbolos histórico-culturais associados à identidade de várias nações, como Portugal.
Por tudo isto, os laticínios fazem parte das recomendações dietéticas oficiais de muitos países, permanecendo nas versões atualizadas de instrumentos de educação alimentar como a Nova Roda dos Alimentos (Portugal), a Pirámide de la Dieta Mediterránea (Espanha), ou o The Healthy Eating Plate criado por peritos da Escola de Saúde Pública de Harvard (U.S.A).
No entanto, independentemente da importância que se possa atribuir ao leite, enquanto alimento básico, alguns dados estatísticos revelam uma tendência de diminuição no seu consumo. De acordo com o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, na última década, houve uma redução de 16% na ingestão de leite, tendência igualmente observada em crianças e adolescentes. Em Portugal, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, verificou-se um declínio no consumo de leite, iniciado em 2005, e que continuou até 2015 a uma taxa média anual negativa de 2,4%. A análise das causas subjacentes a esta tendência é complexa, mas há fatores que podem ser equacionados: a preocupação crescente com a intolerância à lactose; os movimentos contra o consumo de alimentos de origem animal (por razões éticas, ambientais e de saúde); os interesses da indústria alimentar; a publicação de alguns estudos que sugeriram riscos para a saúde associados ao consumo de leite; e ainda a propagação de certas ideias/mitos nas redes sociais digitais. Apresentam-se, abaixo, quatro destas ideias, seguidas de uma reflexão crítica muito sucinta, baseada no conhecimento científico e na observação de alguns factos.
Como é que se explica a presença da enzima lactase num terço da população?
A resposta a esta pergunta é a mutação−13910*T, originada na Europa há aproximadamente 7500 anos. Nos Europeus, esta única mutação é responsável pelo fenótipo conhecido como Lactase Persistance (LP), que possibilita a digestão da lactose na idade adulta. Esta mesma característica, determinada geneticamente, pode ser observada em indivíduos de África e do Médio Oriente devido a outras mutações. Acredita-se que a seleção natural possa ter desempenhado um papel importante na manutenção deste fenótipo, o que representará uma adaptação dos seres humanos à domesticação de animais (e.g. gado leiteiro) e ao subsequente consumo do seu leite. De facto, a idade estimada para os alelos associados ao fenótipo LP coincide com a atribuída às origens da domesticação de animais e da produção de laticínios, práticas culturais que foram sendo transmitidas de geração em geração. Em 2012, foi publicada na prestigiada revista Nature uma das mais importantes descobertas arqueológicas neste âmbito – a prova de que os nossos ancestrais do norte da Europa produziam queijo há pelo menos 7000 anos.
E no que diz respeito à vertente mais polémica “beber leite promove a saúde ou, pelo contrário, aumenta o risco de doenças”, o que dizem os estudos?
Num trabalho de revisão publicado em 2016 na revista Food & Nutrition Research, que incluiu sobretudo meta-análises de estudos observacionais e ensaios clínicos randomizados, a totalidade das evidências científicas disponíveis indica que a ingestão de leite e derivados contribui para a satisfação das necessidades nutricionais, bem como protege contra as doenças crónicas mais prevalentes, sendo escassos os efeitos adversos reportados. Outra metaanálise recentemente publicada na European Journal of Epidemiology, com base na combinação de dados de 29 estudos de coorte prospetivos, mostrou associações neutras entre o consumo de laticínios e mortalidade por todas as causas e ainda, especificamente, por doenças cardiovasculares.
Em relação à obesidade, vários estudos realizados em países distintos enfatizam os benefícios do leite. Resultados preliminares de um estudo desenvolvido com adolescentes portugueses de Viana do Castelo sugerem que a combinação “beber leite + atividade física” diminui a probabilidade de adiposidade central excessiva.
Diminui o risco de obesidade
Contrariamente a uma ideia generalizada, num estudo que envolveu crianças de origem latina a viver nos Estados Unidos, os investigadores verificaram que o consumo mais elevado de gordura láctea estava associado a menor probabilidade de desenvolvimento de obesidade grave. Estes resultados aparentam estar em linha com os de um estudo longitudinal que seguiu, ao longo de 12 anos, 1782 indivíduos adultos do sexo masculino, habitantes das zonas rurais da Suécia: o menor risco de obesidade central foi encontrado para os que tinham o maior consumo de gordura láctea. Veja-se, ainda, que a ingestão diária de 500ml de leite inteiro ao longo de 3 semanas não teve efeitos negativos sobre a lipemia, glicemia e insulinemia quando comparada com a ingestão de leite magro, tal como revelado numa publicação muito recente, de 2018, na revista European Journal of Clinical Nutrition.
Ajuda a prevenir o cancro
Quanto ao cancro, a literatura disponível permite concluir que o “peso” das evidências que revelam efeitos positivos do consumo de laticínios na prevenção de vários tipos de cancro é muito superior ao que representa impactos prejudiciais. Vários Investigadores na área do cancro consideram a possibilidade da existência de riscos, mas apenas em situações de consumo excessivo, ao invés de uma ingestão moderada, como recomendado por nutricionistas, ou no caso do leite/derivados apresentarem resíduos e contaminantes, como antibióticos ou poluentes ambientais. Pelo exposto, a conclusão mais prudente a ser tirada é a de que, até à data, não há evidências científicas que justifiquem que indivíduos saudáveis, sem intolerância à lactose, e que gostem de leite, deixem de o beber, na expectativa que isso lhes traga benefícios para a saúde a longo prazo. Por outro lado, uma vez que ainda persistem muitos aspetos por esclarecer na relação complexa entre o consumo de leite e a saúde/doença, em particular no que diz respeito a possíveis problemas decorrentes do processamento, presença de xenobióticos, condições de criação dos bovinos, entre outros, este assunto não deve ser dado como “caso encerrado”.