Como irá a futura PAC 2021-2027 afetar os Produtores de Leite do Continente?

Em setembro do ano passado a FENALAC recorreu ao Centro de Estudo de Economia e Gestão Aplicada (CEGEA), da Católica Porto Business School, para a realização de um estudo. O objetivo era a avaliação do impacto previsível da futura PAC nos respetivos pagamentos aos Produtores de leite do Continente.

Este estudo foi realizado por uma equipa do CEGEA (autores do presente artigo) tendo sido concluído em dezembro de 2020. No pequeno texto que se segue, apresentamos, de forma sucinta, os principais resultados obtidos, assim como a metodologia adotada para o conseguir.

A metodologia adotada para encontrar uma resposta à questão colocada foi a de identificar primeiro os valores dos pagamentos atualmente recebidos pelos Produtores de leite, e estimar a seguir para efeitos de comparação as alterações futuras previsíveis desses pagamentos para três possibilidades alternativas (cenários) da aplicação da futura PAC em Portugal.

Essas possibilidades foram identificadas de forma a cobrirem o mais abrangente possível o leque de escolhas ao alcance do Governo Português, desde a situação menos desfavorável para os Produtores de leite (cenário 1) até à mais desfavorável (cenário 3). A seguir explica-se como se chegou à caraterização da situação atual dos Produtores em termos dos pagamentos da PAC por estes recebidos (cenário base), e depois como se chegou, para efeito de comparação, à caraterização das três situações futuras alternativas (cenários 1, 2 e 3).

Para caraterização do cenário base socorremo-nos da informação económico-financeira referente à amostra de explorações especializadas na produção de leite de bovinos (OTE450) integrada na Rede de Informação de Contabilidades Agrícolas (RICA)1.

O número de explorações dessa amostra RICA na data mais recente disponível (2018) permitiu-nos ainda agrupá-las em tipos de exploração distintos, cruzando informação de inserção geográfica com a de escala de produção de leite. Foi assim não só possível calcular os pagamentos recebidos em média por todas explorações da amostra no Continente, mas também pelas explorações de cada uma de três regiões distintas, Sul, Interior Norte e Centro (INC), e Litoral Norte e Centro (LNC). Para esta última região os dados permitiram-nos ainda calcular médias para explorações de quatro escalas de produção diferentes2.

Tendo em conta ser a informação de base disponível referente a uma amostra de explorações e não a todas as explorações do respetivo universo (OTE450), num segundo passo corrigimos a informação original pela representatividade de cada exploração nesse universo (dado também disponível na informação RICA), de forma aos dados produzidos passarem a ser representativos para o total das explorações de leite especializadas.

GRÁFICO 1. Explorações (e produção) de leite de bovino especializadas do continente em 2018
Fonte: INE, I.P. Elaborado pelos autores a partir de dados da rica (2018).
Nota: Percentagens para 940 milhões de litros de leite, produzidos por 3122 explorações de leite).
Percentagens para cada região/sistema indicadas no gráficos, na respetiva mancha de cor.

No Gráfico 1, caraterizamos esse universo de explorações objeto do estudo. Isto é, as explorações para as quais medimos o impacto da futura reforma da PAC nos pagamentos por comparação com os que atualmente as beneficiam. Desse gráfico destacamos os seguintes aspetos.

Em primeiro lugar a enorme importância da Região Litoral Norte e Centro (LNC) na produção total, onde se situam atualmente, como podemos ver, 83% das explorações de leite especializadas e 81% da produção de leite. As restantes duas regiões consideradas, o Interior Norte e Centro (INC) e o Sul, representam o remanescente da produção de leite especializada, embora a primeira principalmente em número de explorações, e a segunda em produção, refletindo assim ser a dimensão média das explorações de leite na primeira muito inferior à da segunda.

GRÁFICO 2. Pagamentos da PAC aos produtores de leite especializados em 2018
Fonte: Elaborado pelos autores a partir de dados da rica (2018).

Relativamente à situação presente, em termos dos tipos e importâncias relativas dos pagamentos da PAC às explorações de leite, é importante desde já fazer-se essa caraterização, pois foi esse o termo de comparação (cenário base) para o cálculo do Impacto da futura PAC. No Gráfico 2, construído também com base nos dados da RICA, projetados para o conjunto das explorações de leite especializadas do Continente, listam-se esses pagamentos e o seu peso relativo em valor pago atualmente (dados de 2018) aos Produtores de leite.

Da observação do gráfico é clara a enorme importância relativa para os Produtores de leite no total desses pagamentos de três deles: o pagamento base (36%), os pagamentos ligados à produção (25%) e o pagamento verde (24%). Em conjunto esses três tipos de pagamento representam 85% do total das ajudas da PAC pagas aos Produtores de leite, correspondendo a maior fatia desses ao pagamento base. Relativamente aos restantes pagamentos de que beneficiam esses Produtores, destacam-se as ajudas às zonas desfavorecidas, embora essas beneficiem quase exclusivamente, no caso desses Produtores de leite, os localizados no INC.

Passa-se agora a explicar como se definiram os três cenários alternativos para a futura PAC com vista a comparar a situação previsível futura dos Produtores de leite com a sua situação atual. Em primeiro lugar é importante esclarecer-se que se considerou como única alteração que virá a afetar os Produtores de leite no futuro a alteração das ajudas da PAC.

Isto é, uma vez que o objetivo foi unicamente averiguar o impacto da reforma da PAC nos Produtores de leite, assumiu-se que todos os restantes fatores influentes nos resultados das explorações de leite, tais como a procura de leite, o preço do leite e os custos de produção, não se alterariam. Para definir os três cenários alternativos referidos estabeleceu-se então um conjunto de variáveis que se considerou o Governo terá ainda liberdade de decisão num futuro próximo, para além de outras variáveis para as quais, ou os Estados-membros individualmente não terão autonomia de decisão (definição por diretivas e regulamentação comunitária), ou ao nível do nosso país já existe consenso quando ao formato que irão ter.

Nesse primeiro conjunto, as variáveis incluídas dizem respeito às decisões relativas: (i) ao pagamento base à produção, (ii) aos Pagamentos Ligados à produção de leite de bovino, aos (iii) futuros Pagamentos de Eco Regime, e à (iv) transferência de verbas do 2º para o 1º pilar da PAC para reforços desses Pagamentos de Eco Regime.

TABELA 1. Cenários da PAC considerados e respetivas combinações de políticas distintivas.
Fonte: Elaborado pelos autores.

Na Tabela 1 apresentam-se as combinações dessas quatro variáveis distintivas para cada um dos três cenários considerados.

Relativamente aos Pagamentos Base à produção, componente como se referiu muito importante no total dos pagamentos recebidos pelos Produtores de leite no presente, os seus níveis são variáveis de Produtor para Produtor, pois refletem o histórico de pagamentos recebido por este no passado, e representam uma forma de compensação de perdas de ajudas em reformas anteriores da PAC.

Para a maioria dos atuais Produtores de leite esse pagamento base atinge atualmente valores por hectare (mas não por exploração) bem acima da média para o conjunto de todas as explorações agrícolas elegíveis do Continente. A mesma constatação ao nível da UE em geral levou à decisão de se implementar uma convergência desses pagamentos de forma a que todas as explorações passem a beneficiar de um valor por hectare próximo ou igual à média. Contudo foi dada liberdade a cada Estado Membro de fasear esse processo de convergência, podendo cada não decidir já, para o próximo período de aplicação da PAC, uma convergência total para a média (100%), mas só de 75%, com vista a atenuar o impacto severo e súbito nos setores com valores mais altos, como é claramente o caso do Leite em Portugal. Para esta variável consideraram-se então duas possibilidades da sua concretização na futura PAC em Portugal: (i) um grau de convergência de 75%, ou (ii) convergência total (100%).

Relativamente agora aos Pagamentos Ligados de que beneficia o setor do Leite, os Pagamentos às Vacas Leiteiras, assumiram-se apenas duas possibilidades de formato na futura PAC: (i) que se vão manter, a níveis equivalentes aos atuais, ou (ii) que vão deixar de existir.

Quanto aos Pagamentos de Eco Regime, importa antes dizer que serão na verdade um novo tipo de pagamento, a introduzir com a futura PAC. Sabe-se só que serão voluntários para os Produtores, e que visam compensar a adoção de práticas favoráveis ao ambiente e ao clima para além da condicionalidade atualmente existente para os Pagamentos Verdes, mas nada se sabe em concreto ainda quanto aos tipos de práticas que virão a ser consideradas elegíveis no âmbito dos novos pagamentos. Quanto aos Pagamentos Verdes, estes serão descontinuados, e a respetiva condicionalidade incorporada na anterior condicionalidade geral dos beneficiários da PAC. Importa referir que é ainda muito difícil de descortinar, dada a informação genérica disponível sobre os futuros Pagamentos de Eco Regime, como poderão vir os Produtores de leite a ser elegíveis para esses pagamentos.

Ao nível desta variável consideraram-se duas possibilidades para a futura PAC: (i) que serão identificadas práticas dos Produtores de leite que permitirão que estes venham a ser elegíveis para este tipo de novos pagamentos, e que tal lhes permitirá manter o nível de ajudas correspondente às que atualmente recebem a título dos Pagamentos Verdes; (ii) que os Produtores de leite não virão a ser elegíveis para estes novos pagamentos.

Finalmente relativamente à quarta variável considerada da futura PAC, as transferências de verbas entre pilares, embora cada Estado Membro o possa fazer nos dois sentidos, parece ser consensual internamente que, a existirem, serão do 2º para o 1º pilar, e que terão em vista reforçar os Pagamentos de Eco Regime. Notar que a acontecer, tal implicará necessariamente uma redução das verbas disponíveis para alguns dos pagamentos do 2º Pilar, dentro de um conjunto de restrições a essas reduções já determinadas pela UE.

Quanto às opções consideradas para esta variável na definição dos cenários foram estas: (i) não serão feitas transferências entre pilares; (ii) serão feitas transferências entre pilares da ordem dos 15% do orçamento original do 2º pilar.

Concluindo aqui, consideraram-se assim três possibilidades relativamente ao que irá acontecer à futura PAC no que interessa diretamente aos Produtores de leite, possibilidades essas crescentemente desfavoráveis para estes. Uma primeira possibilidade (cenário 1) refere-se a uma situação futura em que, dentro das atuais restrições à decisão do Governo Português, mais se aproximará da situação atual, ou seja, será a que menos mudanças implicará nos pagamentos pagos aos Produtores de leite, mudanças essas que envolverão, a introdução de Pagamentos Eco Regime que permitirão aos Produtores de Leite obter por essa via verbas equivalentes às que perderão pela extinção dos atuais Pagamentos Verdes, e a manutenção dos atuais Pagamentos Ligados à Produção de Leite e respetivos montantes. Uma segunda possibilidade (Cenário 2) equivale à primeira em tudo exceto no acesso dos Produtores de Leite aos Pagamentos de Eco Regime.

Finalmente admitiu-se ainda a possibilidade não só de os Produtores de leite não virem a ter acesso aos referidos Pagamentos de Eco Regime, mas também não aos Pagamentos Ligados, e além disso verem diminuído os montantes recebidos via pagamentos do 2º Pilar devido a transferências desse Pilar para o 1º que em nada os beneficiam, por se destinaram aos Pagamentos de Eco Regime, a que não teriam acesso.

Passa-se agora a apresentar os resultados obtidos com as simulações efetuadas, resultados esses apresentados na forma das variações percentuais nos níveis de pagamentos recebidos pelos Produtores de leite especializados entre 2018 e 2026 (Tabela 2). Importante referir que tais variações se referem a alterações na totalidade dos Pagamentos da PAC recebidos pelos Produtores de Leite Especializados, sejam do 1º ou do 2º Pilar, e não a nenhum subconjunto desses pagamentos, pois só assim podemos avaliar o impacto líquido da reforma nas contas das explorações de leite.

TABELA 2. Previsão do impacto da reforma da PAC pós 2021 no total dos pagamentos recebidos pelos produtores de leite especializados do continente para três cenários alternativos (variação % 2019-2026).
Fonte: Elaborado pelos autores.

Da observação da Tabela 2 decorre também que, em média, se observarão quebras nos pagamentos totais recebidos pelos Produtores de leite, crescente para os cenários de 1 a 3, num mínimo de 12% e num máximo de cerca de 70%, sendo a quebra para o cenário intermédio (cenário 2) também significativa, da ordem dos 42%.

Olhando agora ao impacto em termos regionais, o grosso dos Produtores e da produção, como se viu localizados no LNC, sairiam sempre penalizados para qualquer cenário, assim como os Produtores do Sul. Já o pequeno número de Produtores situados no Interior Norte e Centro sairia beneficiado para o Cenário 1, mas sofreria um impacto também negativo para os restantes dois cenários.

Para a Região do Litoral Norte e Centro é também de interesse notar que as maiores penalizações surgiriam para as mais pequenas e para as maiores explorações de leite, dos quatro escalões considerados, sendo assim aparentemente independentes de fatores relacionados com a escala de produção.

Finalmente, e para concluir, referimos dois tipos de condições específicas das explorações de leite do Continente identificadas no estudo realizado, importantes para uma avaliação mais circunstanciada das alterações previsíveis nos pagamentos aos Produtores de Leite, acima referidas.

A primeira condição é serem estas explorações responsáveis pela maior parte do abastecimento interno de um produto essencial e com qualidade reconhecida, sendo assim também garante da qualidade de um dos bens alimentares mais imprescindíveis da nossa dieta alimentar, tanto para consumo direto, como na forma de produtos lácteos diversos.

Tal significa que uma fragilização adicional deste setor acarretaria riscos que claramente iriam para além dos problemas diretamente sentidos pelos Produtores de leite, podendo ter impactos ao nível da segurança/ higiene alimentar e da capacidade para fazer face a situações de crise.

A segunda refere-se à situação presente de fragilidade económico-financeira das explorações de leite do Continente, decorrente da sua própria envolvente económica e social, relativamente à qual se destacam os seguintes cinco fatores como os mais condicionantes dessa fragilidade:

  1. As explorações de leite operam em mercados de fatores e do produto cujos preços são ditados por terceiros, fazendo face a uma tendência de baixos preços aos Produtores, pelo menos no mercado interno, e a uma volatilidade acrescida desses mesmos preços. Este posicionamento na cadeia de valor dos Produtores de leite coloca-os numa situação de grande vulnerabilidade, nomeadamente face a alterações desfavoráveis de fatores condicionadores dos seus resultados económico-financeiros, tais como os pagamentos da PAC de que beneficiam.
  2. Apesar de lhe serem tradicionalmente apontados custos significativos a nível ambiental, as explorações de leite também conseguem gerar externalidades positivas nos locais onde estão implantadas e não são devidamente compensadas pelas mesmas. Benefícios como transformação de matéria orgânica, preservação de paisagens, proteção contra incêndios e coesão territorial são alguns dos exemplos que podemos dar a este nível e que não são alvo de qualquer compensação direta. Isto leva a que haja um problema de subestimação do valor acrescentado gerado por estas explorações.
  3. Por outro lado são patentes pressões sociais e políticas de vária ordem, sobretudo ao nível de requisitos de impacto ambiental da produção e do bem-estar animal, que implicam, em larga medida, um acréscimo dos custos de produção de leite no continente português. A este nível, seria importante a PAC ajudar o setor nesta transição para padrões de produção mais sustentáveis, nomeadamente a prestar serviços de ecossistema ambientais à sociedade, numa lógica de economia circular, por um lado para preservar um setor produtivo essencial, por outro para o tornar mais sustentável ambientalmente.
  4. Adicionalmente é antecipável, no médio e longo prazo, um aumento de concorrência no setor do leite e dos produtos lácteos na UE e em Portugal, que advém do crescimento da oferta em economias emergentes como, por exemplo, a China. Neste cenário, é expectável que, no médio e longo prazo, o excesso de procura no mercado chinês possa ser colmatado pelo próprio país. E que este país e outros nas mesmas condições se tornem mais competitivos nos mercados internacionais, colocando pressão sobre países ou blocos que são atualmente exportadores líquidos como, por exemplo, a UE.
  5. Por fim o setor do leite tem ainda um caminho a percorrer, no sentido da indústria nacional do setor aumentar a produção de leite e produtos lácteos de maior valor acrescentado (queijos, iogurtes e outros produtos) de que somos internamente deficitários, num mercado que é muito aberto à concorrência externa para esse tipo de produtos lácteos, e dessa forma ser capaz de aumentar o preço do leite pago à produção, fortalecendo a posição dos Produtores de leite na cadeia de valor em que os mesmos se inserem. Este reequilíbrio das posições na cadeia de valor, entre Produtores, indústria e distribuição, é essencial a um desenvolvimento saudável da fileira do leite em Portugal.
TEXTO: Miguel Sottomayor, Leonardo Costa, Mário Pedro Ferreira,
Investigadores no Centro de Estudos de Gestão e Economia Aplicada, da Faculdade de Economia e Gestão/ Católica Porto Business School
FONTE: Espaço Rural, CONFAGRI
NOTAS: 1 Dados fornecidos pelo Gabinete de Planeamento, Políticas e Administração Geral(GPP), do Ministério da Agricultura.
2 S1 (>= 1.000.000 litros), S2 (500.000 a < 1.000.000 litros), S3 (250.000 litros a < 500.000 litros) e S4 (< 250.000 litros)